PONTO DE VISTA: Afinal, o que é a Tabela SUS?

Como ela surgiu e qual o seu papel no financiamento atual da saúde pública no Brasil?

Marcelo Casal Jr./Agência Brasil

Uma das reivindicações mais frequentes é que o Sistema Único de Saúde é subfinanciado e que mais recursos orçamentários precisam ser aplicados para as necessidades crescentes de acesso, incorporação de tecnologias e de se assegurar o que a Constituição consagrou.

Como fundamentação para esse pleito, os seus defensores utilizam-se de dados de economia comparada nos quais o percentual do PIB brasileiro destinado aos gastos com saúde é colocado em perspectiva com outros países.

Adicionalmente, argumentam que a Saúde Suplementar abarca apenas 25% da população brasileira (1/4 aproximadamente possui plano de saúde) e esse setor corresponde a mais de 50% do que é gasto em saúde no Brasil, o que, na prática, aumenta ainda mais o “déficit” de investimento per capita na saúde pública.

Na outra ponta, há os que argumentam que o problema é de gestão: eficiência e transparência faltam na saúde pública e privada.

Não fosse a incompetência e desonestidade dos gestores e a inoperância do sistema, muito mais poderia ser feito e sem uma mudança estruturante do modelo de gestão da saúde, aumentar o aporte de recursos é apenas aumentar o montante que chega ao ralo por onde escorre o orçamento sanitário.

Ademais, pontuam que a Saúde Suplementar, pelo fato de ter gastos que podem ser deduzidos dos impostos a pagar, é na verdade custeada pelo erário, de modo que, na prática, todo o orçamento da saúde é público.

A Tabela SUS

No meio desse debate, de tempos em tempos aflora com maior ou menor intensidade a necessidade de se reajustar a Tabela SUS. Mas o que é afinal essa tal tabela? Como ela surgiu e qual o seu papel no financiamento atual da saúde pública no Brasil?

De modo esquemático e simplificado, a Tabela SUS é uma lista que inclui procedimentos médicos e materiais e insumos necessários para o tratamento de algumas doenças.

Por exemplo, na ortopedia: há um código presente na tabela correspondente ao tratamento da fratura de fêmur, que tem um valor associado de “X”, que está atrelado com os gastos médicos relacionados a esse procedimento cirúrgico, como honorários de equipe.

Há também um código atrelado ao material necessário para que um ortopedista realize o tratamento da fratura do fêmur, como placa e parafuso e a esse código também há um valor de “Y”.

Mas cabe aqui uma nota para explicar que existe na tabela SUS uma tabela de valor para o procedimento (a cirurgia) e uma tabela de valor para o material (placa e parafuso, no nosso exemplo), embora não se possa tratar uma fratura de fêmur só com equipe médica e a placa e o parafuso, sem a equipe de cirurgiões e sem o paciente, claro.

Ou seja, a Tabela SUS não é unificada na cobertura de todos os custos envolvidos num procedimento como a cirurgia de uma fratura de fêmur.
“Bisneta” do Inamps

A tabela do SUS é bisneta da tabela do antigo Inamps, que pagava aos seus credenciados valores pré-estabelecidos para a realização de procedimentos, exames, consultas e internações, por exemplo, em pacientes que faziam jus a esse “seguro”.

O hospital “Z” internava, realizava exames, cirurgias etc. e mandava a fatura para o Inamps pagar; o médico fazia consultas, respondia pareceres, realizava operações e mandava a conta para o Inamps pagar.

De tempos em tempos, esse valor era reajustado e a vida seguia. Assim, era o modelo de pagamento vigente antes de 1988. Veio a Constituição, a saúde como direito universal, a obrigação do Estado e assim nasceu o SUS.

Obviamente, essa transição não se deu imediatamente à assinatura do doutor Ulisses, mas de modo gradual e ainda hoje, mais de 30 anos depois, ainda seguimos mudando o “mindset” de um modelo de pagamento por procedimento, “fee for service”, para um modelo de transferência global de recursos com intuito de oferecer saúde a todos e não apenas tratamento de doenças para alguns.

Nesse sentido, a Tabela SUS, em que pese sua origem no antigo sistema, é hoje algo diverso do que era. Assim, deixou de ser “a” forma de pagamento para se transformar em “mais um” dos componentes do financiamento público da saúde dentro do nosso SUS.

E dentro dessa “nova” perspectiva, deixou de se comportar como exclusiva do financiamento do sistema para atuar como mais uma referência de valor a ser repassado pela União a estados e municípios pelos serviços “faturados” por seus prestadores/executores lá na ponta.

A esse valor, que diga-se de passagem não é reajustado há vários anos, se somam outras fontes de financiamento, como os por serviços habilitados dentro de uma “conta” de alta e média complexidade, dita teto MAC no jargão do SUS.

Além disso, há investimentos em equipamentos e infraestrutura que auxiliam na constituição dos aparelhos de saúde Brasil afora e também há por parte do ente federal o subsídio indireto por meio de isenções tributárias para alguns prestadores que possuem um selo que lhes conferem certa imunidade tributária.

Mas o SUS é trindade, tripartite e associado a isso há transferência das fazendas municipais e estaduais de recursos adicionais aos repasses federais e às secretarias estaduais e municipais de saúde para o custeio das ações na área.

Preço e valor

Preço, infelizmente, não é determinado por lei, decreto, portaria e nem mesmo por tabela de preço… Numa invisível, mas indefectível razão entre oferta e demanda, surge num mercado competitivo e sem monopólios um numerário em moeda corrente que de algum modo representa o mais próximo possível do valor “justo” de um produto, bem ou serviço.

De modo artificial buscarmos definir o preço de algo e imediatamente nos defrontamos com duas realidades cruéis: ou esse produto some do mercado, o que na saúde pode levar à desassistência, ou ele é vendido acima do preço justo que o vendedor estaria disposto a precificar num mercado não tabelado.

A situação acima gera indiretamente um aumento daquele tal subfinanciamento real do qual falamos no início, com majoração artificial das margens de lucro.

Compreendo perfeitamente a legítima reivindicação daqueles que trabalham no SUS, mas recebem como se estivessem ainda no Inamps.

Nessa lógica de pagamento de serviços, por meio de uma tabela “cartorial”, com o tempo, o que se gera é um estrangulamento daqueles que operam acima dos custos de produção e um enriquecimento antinatural dos que têm permissão legal para ampliar suas margens de lucro acima do que julgam razoável.

Mas a mim me parece que simplesmente reajustar o valor da tabela é retroagir ao passado, aos tempos pré-civilizatórios ao SUS, aos tempos hiperinflacionários com a famigerada indexação. É buscar um paliativo ao invés de procurar a cura definitiva.

De resto, concordo que a saúde é subfinanciada, mas que antes de aprimorarmos a gestão, aumentar os gastos não significará ampliar qualidade. O SUS revolucionou a sociedade brasileira e nos livrou da barbárie durante o auge da pandemia.

Talvez para acabarmos com os conflitos de interpretação acerca do papel da Tabela SUS, o melhor seria extingui-la, incorporando os valores reembolsados pela União a outros modos de transferência de recursos existentes dentro de uma lógica condizente com o SUS, ou abrindo-se de modo pioneiro a uma nova modalidade de pagamento, especialmente para a média e alta complexidade, cujo cuidado seja de fato centrado no paciente e o pagamento seja baseado não só em produção, mas baseado em geração de valor ao usuário.

  • Marcus Vinicius Dias é secretário-executivo adjunto do Ministério da Saúde, médico e gestor público de saúde 

informações: Metropoles.

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