A preocupação com a verdade está perdendo o espaço na sociedade e no debate público.
Por Jucemar da Silva Morais*
As assim chamadas fake news definirão o ano de 2018! Trata-se de uma verdade já um tanto quanto incontestável – e chega a ser irresistivelmente irônico afirmar isso – que a boataria, hoje impulsionada pelo “deserto do real” (ZIZEK, 2011) que se tornou o mundo digital, já se estabeleceu de forma permanente e perniciosa no âmbito das mídias sociais e dos meios de comunicação.
É fato (e não boato) que elas, as notícias falsas, existem desde de muito antes de chegarmos ao estado atual e avançado de acesso, quase que em tempo real, das informações (até o momento em que elas não se revelam desinformações) e notícias sobre os mais variados temas do cotidiano, não apenas político. Todavia, foi no ato de 2017 e no contexto da eleição de Donald Trump que os riscos reais dessa prática se tornaram evidenciados e motivo de verdadeira preocupação em todo o globo.
Como se viu, foi nesse episódio que observamos como os boatos virtuais possuem o potencial de pautarem e confundirem o eleitorado (razão, inclusive, das falhas ocorridas nas pesquisas de intenção de voto1). E isso é, evidentemente, algo que poderá também afetar os resultados nas eleições domésticas brasileiras, evidenciando um claro prejuízo à civilidade do debate democrático, catabolizando a já crescente polarização ideológica que temos vivenciado desde a última eleição presidencial, em 2014, e logo após o processo jurídico-político de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Semanas atrás acompanhamos a comoção nacional em razão do brutal assassinato de Marielle Franco e de seu motorista Anderson Pedro Gomes, o que provocou a manifestação nas ruas de milhares de pessoas, e não só no Brasil2. Por outro lado, no mundo digital, o episódio obteve um alcance sem precedentes, gerando milhares e milhares de comentários, compartilhamentos e discussões, algo até mesmo surpreendente para os analistas que buscam avaliar as repercussões, no campo das mídias digitais, que geram os dados relativos a eventos políticos que repercutem no âmbito digital.
A par disso, logo em seguida às primeiras notícias relacionados ao crime contra a vereadora, muito em razão de sua militância política e do seu engajamento na luta pela defesa dos Direitos Humanos, começaram a circular, nas redes sociais e por meio de mensagens enviadas com áudios, montagens (memes), áudios e vídeos via WhatsApp, uma série de informações falsas que tentavam associar a vítima ao crime organizado. Essas atitudes não ficaram restritas a pessoas comuns fazendo uso (ou abuso) do seu fundamental “direito à liberdade de expressão”3, pois o episódio notabilizou-se ainda mais quando um certo deputado usou sua conta pessoal do Twitter para propagar as mentiras4 e uma desembargadora que atua no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro passou a endossar as ofensas e até mesmo repetir a versão falsa de que a vereadora teria sido patrocinada em sua campanha pelo Comando Vermelho.
Em contrapartida, em razão da péssima repercussão que geraram e da reação em cadeia de outros milhares de usuários em resposta a esses dois comentários, tanto um quanto outro tentou justificar suas postagens e até mesmo apagá-las, não sem antes acabarem como alvos de eventuais responsabilizações judiciais e legais que foram então ajuizadas em razão da propagação desses boatos5.
Assim, atento aos reflexos e consequências, inclusive de natureza jurídico-criminal, que a disseminação de notícias falsas pode gerar, o Conselho de Comunicação Social da Câmara dos Deputados criou uma comissão, no último mês de março, com o intuito de apresentar sugestões e debater projetos que tratam dessa tão relevante temática atual. Essa proposição surgiu, sobretudo, como resposta a uma medida que vinha sendo especulada como possível de ser tomada, tão polêmica quanto drástica (eis que assemelhada à censura), de se obrigarem os provedores de internet a retirar do ar notícias consideradas falsas, sem necessidade de autorização judicial.
Ironicamente, nada mais do que uma fake news sobre um projeto de lei em trâmite para o controle de fake news, que é o PL 6812/2017, de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). Tal projeto tem, em verdade, a finalidade de tornar crime “a divulgação ou compartilhamento de notícia falsa ou ‘prejudicialmente incompleta’ na internet”6, com a previsão de uma pena de detenção de dois a oito meses. Resta saber, de qualquer forma, até que ponto medidas como essa afetam a propagação desse tipo de notícia mentirosa e até que ponto invadiria o direito de livre manifestação do pensamento.
É um debate, sem dúvida, necessário a ser feito. Vivemos uma era já dominada pelo conceito de ‘pós-verdade’ (post-truth) que, segundo a Universidade de Oxford (por meio do seu departamento que elabora os dicionários da língua inglesa, essa foi a palavra do ano de 2016), “se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”7. Essa denominação ajuda a compreender o risco de crescimento e avanço das fake news, simbolizando o fato de que a preocupação com a verdade está perdendo o espaço na sociedade e no debate público.
O caso Marielle, portanto, apenas simboliza, nesse ano de 2018, como serão repercutidos e discutidos os principais acontecimentos, não apenas do campo político, que acontecerão no Brasil e no mundo. Além desse, ainda veremos pela frente eventos esportivos como a Copa do Mundo na Rússia; o casamento real britânico do príncipe Harry com a atriz americana Meghan Markle, no castelo de Windsor; a primeira participação do partido político das FARC, surgido do acordo de paz com a guerrilha na Colômbia, nas eleições presidenciais daquele país; eleições nos EUA, como primeiro teste após a eleição do presidente Donald Trump e, evidentemente, em um contexto de combate à corrupção e um ambiente político de uma cada vez mais crescente polarização ideológico-política, as eleições presidenciais no Brasil.
Por isso, quando chegarmos ao final do ano, por certo, a depender de como lidaremos com esse fenômeno das fake news, terão elas definido, como dissemos logo de início, o ano de 2018.
1) Há relatos que mesmo o próprio presidente eleito, Donald Trump se mostrou surpreso pelos resultados. Cf. em https://tinyurl.com/y7hfn7ge. Acesso em 20 de março de 2018.
2) De acordo com os estudos elaborados pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura – Labic, a coleta de publicações no Twitter com as citações a “Marielle Franco“, totalizaram mais de 3 milhões e meio de tweets sendo possível de se identificar a redor de todo o globo, manifestações a respeito por meio de um script elaborado para monitorar as origens das postagens. MALINI, Fabio. Marielle, Presente. Mapa de tweets entre 08 e 16 de março de 2018. Disponível em:https://tinyurl.com/yaonm52d. Acesso em 28 de março de 2018.
3) Há um limiar muito tênue, sem dúvida, entre se controlar a propagação de notícias falsas ou boatos e se violar o direito fundamental à liberdade de expressão, sendo a censura um fantasma sempre a rondar ao redor desse debate. Basicamente deveria ser em torno disso a preocupação principal em torno das propostas de regulamentação ou até mesmo criminalização dessa prática, como falaremos logo adiante. A respeito, cf. em https://tinyurl.com/y7g9fenf. Acesso em 20 de março de 2018.
4) O mandado do referido deputado, inclusive, já está na mira das comissões de ética e poderá se tornar o primeiro caso de perda do cargo em face desse tipo de manifestação. Nesse sentido, cf. https://tinyurl.com/ya2ppeda. Acesso em 05 de abril de 2018.
5) E o mesmo ocorre no caso da mencionada desembargadora que já está sob investigação e poderá sofrer sanções administrativas em razão de sua fala, no âmbito do CNJ. Cf. em https://tinyurl.com/y7s5xqwy. Acesso em 5 de março de 2018.
6) Para o acesso à integra do referido projeto de lei, cf. o seu interior teor disponível em https://tinyurl.com/ya5jreg8. Acesso em 5 de abril de 2019.
7) Cf., a respeito, https://tinyurl.com/hfl2boy. Acesso em 03 de abril de 2018.
*Jucemar da Silva Morais é advogado, doutor em Função Social do Direito, mestre em Direito, professor de Direito Penal e de Teoria da Argumentação Jurídica, membro associado da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).