PALCO ESTENDIDO
A possibilidade de desfiles cívico-militares do Bicentenário da Independência e comícios realizados logo na sequência serem entendidos pelo eleitor como eventos únicos para demonstrar a força do candidato à reeleição Jair Bolsonaro gerou divergência no Tribunal Superior Eleitoral.
A questão está no cerne do julgamento de três ações que discutem a ocorrência de conduta vedada e abuso de poder político e econômico pelo então presidente, no 7 de setembro de 2022, momento em que estava em campanha para se manter no cargo.
O julgamento foi retomado na manhã desta quinta-feira (26/10) e interrompido após três votos. O relator, ministro Benedito Gonçalves, votou pela procedência das ações e foi acompanhado pelo ministro Floriano de Azevedo Marques. Para eles, a conduta de Bolsonaro representou abuso de poder e econômico com gravidade suficiente para impor sua inelegibilidade.
Se vencedor, esse entendimento não alterará a situação do ex-presidente, que já se encontra inelegível porque foi punido em outra ação, em junho de 2023. As inelegibilidades não se somam e são contadas a partir da mesma data: o primeiro turno das eleições em que ocorreram.
Benedito Gonçalves ainda votou por afastar a pena de inelegibilidade do general Walter Braga Netto, vice de Bolsonaro, já que participou de forma secundária e coadjuvante dos comícios. Já Floriano viu gravidade suficiente nos atos do militar e propôs torna-lo, também, inelegível.
A procedência é das duas ações de investigação judicial eleitoral (Aijes), ajuizadas por PDT e pela candidata à presidência em 2022, Soraya Thronicke. E também de representação, na qual ambos votaram por multar Bolsonaro em R$ 425,6 mil e Braga Netto em R$ 212,8 mil.
Abriu a divergência o ministro Raul Araújo, para quem não houve conduta vedada por parte de Bolsonaro justamente porque os dois eventos se cindiram perfeitamente. Ele entendeu, assim, que os atos não confundiram o eleitor, nem desequilibraram as eleições, afastando o abuso.
O julgamento será retomado na próxima terça-feira (31/10). Restam votar os ministros André Ramos Tavares, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e um terceiro membro do TSE integrante do Supremo Tribunal Federal.
Na data das sustentações orais, quem compôs a bancada foi Nunes Marques. Nesta quinta, ele se ausentou por estar em viagem. O substituto André Mendonça não pôde comparecer, então Dias Toffoli participou do julgamento, mas não teve tempo de votar ainda.
Candidato-presidente
Para o ministro relator, Bolsonaro e Braga Netto planejaram os atos oficiais em Brasília e no Rio de Janeiro e os atos de campanha de forma a aproveitar aspectos logísticos e financeiros, com atuação de órgãos públicos suficiente para configurar a conduta vedada do artigo 73 da Lei das Eleições.
A norma proíbe aos agentes públicos a prática de condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos, tais como uso de bens públicos e cessão de servidores ou estrutura estatal. Segundo Benedito Gonçalves, a campanha bolsonarista violou essas dois pontos.
Em sua análise, Bolsonaro transformou o evento cívico-militar em uma festa da maioria, composta por pessoas de bem que correspondem a seus apoiadores, usando ideais abstratos como liberdade e patriotismo para instigar o combate a ameaças imaginárias como “a luta do bem contra o mal”.
“O chefe de Estado, fazendo as vezes de candidato – ou vice-versa – não deixou espaço para que o pluralismo político coubesse na festa cívica. A militância convocada para o evento do Bicentenário recebeu como derradeira missão mostrar a força da candidatura”, avaliou o relator.
Assim, mesmo a retirada da faixa ao fim do evento oficial não afasta a confusão gerada. Pior: funciona como catalisador das expectativas, ao sinalizar que o candidato estaria livre para falar, criticar adversários, estimular a militância e pedir votos, como no clímax da mobilização gerada por conta do evento da Independência.
“Além dessa proximidade, houve esforço para associar o ato oficial ao da campanha. Os comícios não tiveram nada de ocasional. Foram ardilosamente convocados para fazer uso direto do evento público”, avaliou o ministro Floriano de Azevedo Marques.
Qualquer um poderia
Abriu a divergência o ministro Raul Araújo, para quem não houve qualquer uso de bens públicos e cessão de servidores ou estrutura estatal no episódio. E sem as condutas vedadas, não há hipótese de abuso político ou econômico, muito menos qualquer gravidade a impor punição.
Para ele, os atos no dia 7 de setembro foram muito distintos. Não haverá como confundir um evento tradicional, solene, ordenado e planejado, marcado pela participação de tropas e aparato militar, com um comício organizado por particulares, aberto e informal.
“O posterior ato de campanha politico eleitoral próximo ao local do evento concluído pode ser feito por qualquer candidato, não apenas aquele que busca a reeleição. Se alguma vantagem existir, ela é mínima, insuscetível de desequilibrar e inerente ao instituto da reeleição”, disse o ministro.
O voto divergente adotou a premissa de que, no âmbito das chamadas condutas vedadas aos agntes em campanha, impera os princípios da tipicidade e da estrita legalidade. Ou seja, o ato praticado deve corresponder exatamente ao tipo que está definido na lei.
No caso, não há lei que vede comício após ato cívico-militar. “Não se pode surpreender candidatos com interpretações proibitivas acerca de condutas que não estão objetivamente previstas como vedadas na legislação eleitoral”, afirmou o ministro Raul Araújo.
Além disso, apontou que não se pode exigir impessoalidade absoluta daquele que concorre à reeleição. Se qualquer candidato poderia provocar sua base de eleitores para comparecer à Esplanada dos Ministérios após o desfile, isso abarca também a figura do presidente.
“OS comícios foram realizados em pleno período de campanha e direcionados aos interessados presentes no local. Eles estavam ali espontaneamente. Não há elemento que denote terem os participantes sido compelidos a participar ou permanecer no local”, ressaltou.
Gravidade?
Apesar de afastar a prática de conduta vedada e de abuso de poder, o voto de Raul Araújo ainda destaca que não há qualquer gravidade nos fatos porque o próprio TSE deferiu liminares que proibiram a campanha bolsonarista de usar imagens do Bicentenário da Independência na propaganda eleitoral.
Esse elemento foi importante para afastar a punição a Bolsonaro em outras aijes pelas quais foi julgado, relativas ao abuso de poder por empregar estrutura pública e recursos nas lives eleitorais que fez nos Palácios do Planato e do Alvorada.
Dessa vez, o ministro Benedito Gonçalves entendeu que houve gravidade pela alta reprovabilidade dos atos de Bolsonaro, pelos severos impactos da apropriação eleitoreira da data festiva e pela ausência de freios para potencializar os ganhos eleitorais da chapa composta por ele.
“A repercussão sobre o pleito foi gigantesca e pode ser ilustrada pelo maciço comparecimento de apoiadores que atenderam a chamados feitos por Bolsonaro, bem como pela intensa cobertura midiática que projetou para eleitor a apropriação da coisa pública”, disse o relator.
Floriano de Azevedo Marques também considerou os fatos de alto impacto nas eleições de 2022 e pontuou que o estancamento dos efeitos pela liminar concedida pelo TSE não basta para elidir a gravidade inicial das ações.
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