País vizinho tem dívida de US$ 682 mi;
As intenções do novo governo Lula de retomar a utilização de recursos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para financiar empresas brasileiras que realizam obras no exterior intensificaram os debates, as críticas e até as fake news sobre esse modelo de incentivo a exportações brasileiras.
Declarações do presidente confirmaram os planos do petista de resgatar a prática adotada em seus dois primeiros mandatos, que foi iniciada por seu antecessor, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e repetida pela ex-mandatária Dilma Rousseff (PT).
No centro dos ataques à proposta, está o argumento de que esse tipo de financiamento à exportação de bens e serviços brasileiros de infraestrutura teria sido um fracasso, principalmente por conta de acordos com países como a Venezuela.
Assim como Cuba e Moçambique, o país andino é um dos que possui dívidas com o BNDES e essa inadimplência é constantemente utilizada pelos críticos para rechaçar a retomada dos desembolsos pós-embarque, como são chamados esses tipos de financiamentos realizados pelo banco.
Além das críticas, os contratos entre o Banco de Desenvolvimento e empresas brasileiras que atuaram na Venezuela também são, muitas vezes, objetos de manipulações e fake news que circulam nas redes sociais e em meios de comunicação.
Entre as mentiras mais comuns estão a de que o BNDES emprestou dinheiro diretamente ao país vizinho ou ainda que esses empréstimos teriam sido feitos exclusivamente por proximidade ideológica entre os governos petistas, no Brasil, e chavistas, na Venezuela.
O Brasil de Fato investigou os acordos do BNDES com empresas que atuaram na Venezuela e conversou com especialistas no tema para entender como realmente esses contratos funcionaram, se eles foram verdadeiramente prejudiciais ao país e quais as possibilidades e as limitações para repetir a receita.
BNDES na Venezuela: o Brasil saiu perdendo?
A dívida da Venezuela com o BNDES existe e não é um mito. Segundo dados oficiais, até dezembro de 2022, o país devia US$ 682 milhões em parcelas atrasadas de contratos adquiridos entre 2001 e 2015. Do total, mais de 96% dessa dívida (US$ 658 milhões) já havia sido indenizada pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE), mecanismo que funciona como um seguro aos acordos. Além disso, os débitos venezuelanos representam mais de 65% de todas indenizações feitas pelo FGE nos últimos 20 anos.
No entanto, apesar das dívidas, existem razões para acreditar que os negócios não fizeram mal ao Brasil. Ao contrário, eles foram política e economicamente vantajosos ao país por potencializarem a balança comercial brasileira com os inadimplentes que, na maioria das vezes, superou as dívidas. Essa é a análise do economista Pedro Silva Barros, pesquisador do IPEA e ex-diretor de Assuntos Econômicos da Unasul.
Referência em estudos sobre a América Latina e sobre a Venezuela, Barros acredita que não se pode analisar os financiamentos de obras na Venezuela e a dívida do país de maneira isolada, sem levar em conta aspectos geopolíticos e, principalmente, econômicos.
“Nesses três casos de países inadimplentes [Cuba, Venezuela e Moçambique], o Brasil acumulou, nesse mesmo período em que havia desembolsos pós-embarque, enormes superávits, várias vezes superior aos desembolsos e várias vezes superiores à inadimplência”, diz.
De fato, a balança comercial com a Venezuela alcançou níveis inéditos nos últimos 20 anos e sempre se manteve favorável ao Brasil. Entre 2000 e 2021, período em que o BNDES financiou exportações de bens e serviços para o país vizinho, o Brasil acumulou um superávit de US$ 41,4 bilhões com a Venezuela. Para efeito de comparação, o número é 60 vezes maior do que o total da dívida que os venezuelanos têm com o banco atualmente.
Além disso, os bens e serviços exportados nesse período – majoritariamente de infraestrutura e construção civil – eram de alta complexidade, com maior valor agregado e que, portanto, tendem a produzir um efeito multiplicador na economia. “O BNDES financia exportações de qualidade. Por que dizemos de qualidade? Porque ela emprega mais, tem mais valor agregado e consegue chegar a países que, sem crédito, não chegaria, e a Venezuela é um desses países”, diz Barros.
“Uma tonelada do que o Brasil exporta hoje para a China vale 265 dólares. Já uma tonelada do que o Brasil exportava para a Venezuela, para Cuba, para Moçambique nesse período que havia financiamento com desembolsos pós-embarque valia, em média, mais de 1,8 mil dólares, então é um desbalanço total”, explica.
Algumas condições exigidas pelo BNDES às empresas que realizaram obras na Venezuela colaboram com os argumentos do pesquisador. O banco, por exemplo, impunha um índice mínimo de nacionalização de 60%, o que obrigava os exportadores que recebiam os empréstimos a comprar insumos e materiais de outras empresas brasileiras.
Além disso, todos os financiamentos abertos pelo banco eram em reais, mas os pagamentos das parcelas que seriam feitas pelo país que importou os bens e serviços brasileiros deveriam ser realizados em dólares diretamente ao BNDES, o que também convertia a prática em uma fonte de divisas para o Brasil.
Dívidas, diplomacia e geopolítica
Dos mais de US$ 1,5 bilhão financiados pelo BNDES para obras na Venezuela, o país vizinho ainda tem US$ 123 milhões de dólares em parcelas que vencerão nos próximos meses e anos. Somadas com as dívidas, o governo venezuelano ainda deverá pagar ao banco US$ 805 milhões.
Enfrentando uma das piores crises econômicas de sua história desde 2014 e lidando com o endurecimento das sanções dos EUA desde 2017, a Venezuela teve e segue tendo dificuldades para honrar compromissos. Por outro lado, quando todos os desembolsos do BNDES para obras no país foram suspensos em 2015 por conta do envolvimento de empreiteiras em acusações de corrupção, Caracas ainda não estava em situação de inadimplência.
Analistas afirmam que o rompimento diplomático por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) com a Venezuela piorou ainda mais a situação dos pagamentos atrasados pois, a partir de 2019, o país perdeu canais de comunicação diretos com o governo brasileiro.
Durante a posse da nova direção do BNDES, o presidente Lula também culpou Bolsonaro pelas dívidas de outros países com o banco e garantiu que Cuba e Venezuela pagarão as parcelas em atraso porque são “amigos do Brasil”.
“Vamos ser francos, os países que não pagaram, seja Cuba, seja Venezuela, é porque o presidente [Bolsonaro] resolveu cortar a relação internacional com esses países e, para poder ficar nos acusando, deixou de cobrar. Eu tenho certeza de que no nosso governo esses países vão pagar porque são todos países amigos do Brasil e certamente pagarão a dívida que têm com o BNDES”, disse Lula.
Para Barros, os primeiros passos dados pelo novo governo brasileiro para retomar as relações diplomáticas com o vizinho são benéficos para que seja possível estabelecer diálogos a respeito do pagamento da dívida.
“Se a pergunta for direta: valeu a pena financiar os desembolsos pós-embarque para exportações aos países que hoje estão inadimplentes? A resposta econômica, matemática, aritmética é sim, valeu muito a pena. Essa dívida deve ser esquecida, abandonada, como foi nos últimos anos? A resposta é não. E qual é o meio de se recuperar? Construir agendas conjuntas com esses países, recuperar as boas relações com esses países, que é a tradição da política externa brasileira”, afirma.
A visão otimista de que o problema da dívida venezuelana pode ser resolvido no futuro próximo também é compartilhada por Arthur Koblitz, presidente da Associação dos Funcionários do BNDES (AFBNDES) e membro titular do Conselho de Administração do banco.
Ao Brasil de Fato, ele afirma que as tensões políticas entre os dois países nos últimos anos dificultaram algum tipo de acordo em relação à inadimplência do vizinho, que enfrenta um crescente isolamento internacional por conta das sanções estadunidenses e precisa resgatar canais de diálogo com parceiros como o Brasil.
“Eu tenho uma expectativa, por conta desse raciocínio, que a Venezuela quer resolver o problema negativo que teve nesse processo, que é o não pagamento da dívida, e eu acredito que um acordo seja possível. Não foi possível no governo Bolsonaro, e eu acho que não dá pra excluirmos isso, pelo fato do governo ter colocado uma ideologia acima do interesse nacional”, diz.
Koblitz ainda aponta que esses casos de inadimplência não devem minar as capacidades do banco, que tem potencial para levar empresas brasileiras a disputarem mercados globais e servir como um meio de promoção da integração na América Latina.
“Eu espero que a gente possa olhar essa história toda em retrospecto e ver um processo de aprendizado, que haja um amadurecimento, porque se o Brasil quer ser uma liderança terá que passar por esse tipo de coisa e ter a tranquilidade para lidar com isso. A Europa já deixou de pagar os EUA, o Brasil já deixou de pagar os EUA, mas nem por isso os EUA saíram rompendo e falando que não poderiam mais emprestar dinheiro para o resto do mundo”, argumenta.
O presidente da AFBNDES ainda afirma que retomar a capacidade de financiar esse tipo de exportação envolve “riscos” que o país deve assumir se quiser repetir os planos. “Se o Brasil quer ser credor, se o Brasil quer brincar nesse jogo de ser um protagonista, de liderar um processo, isso envolve riscos e ele tem que saber brincar e enfrentar problemas que acontecem, principalmente no terceiro mundo, que é a região onde estão as maiores oportunidades para essas linhas de crédito e que são disputadas com empresas e países do primeiro mundo”, aponta.
“Dinheiro para amigos” e outras fake news
Ao contrário do que algumas informações falsas que circulam em redes sociais querem apontar, o BNDES nunca emprestou quantias diretamente a nenhum país, muito menos à Venezuela. Os desembolsos pós-embarque são financiamentos destinados a empresas brasileiras que exportam bens e serviços produzidos no Brasil para outros países.
Outra mentira comum é a de que os empréstimos realizados a países como Cuba e Venezuela teriam sido feitos por proximidade ideológica dos governos petistas com essas nações. Na verdade, entre 1998 e 2020, o principal destino dos desembolsos do banco na modalidade pós-embarque foram os EUA, seguidos pela Argentina e Angola.
“Isso é muito criticado, o fato de que as exportações seriam para ‘países amigos’, tentando passar uma conotação de aliados ideológicos do atual presidente do Brasil. A resposta é não, isso é completamente errado. Na verdade, todos os países deveriam ser amigos do Brasil, mas desde que há esse mecanismo que foi criado no governo FHC em 1998, do total dos desembolsos, mais de 40% teve como destino um único país, que foram os EUA”, afirma Pedro Silva Barros.
O primeiro financiamento de exportação para a Venezuela ocorreu em 2001, ainda no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. À época, o governo venezuelano contratou a construtora brasileira Odebrecht para a realização das obras da Linha 4 do Metrô de Caracas. O acordo entre a empresa e a Venezuela ocorreu ainda em 1999 e o contrato com o BNDES foi assinado em julho de 2001, prevendo o financiamento de US$ 107,5 milhões.
Entre 2001 e 2015, o BNDES assinou outros cinco contratos para financiar obras realizadas por empresas brasileiras na Venezuela, que incluíam ampliações de linhas do Metrô de Caracas e de Los Teques, as construções de um estaleiro, de uma siderúrgica e uma série de obras de saneamento e infraestrutura na Bacia do Rio Tuy. A maioria desses contratos foi suspensa em 2015.
A quantidade de obras também foi motivo para uma outra fake news muito difundida envolvendo o Banco de Desenvolvimento e a Venezuela: a de que o BNDES deixou de investir em projetos no Brasil para direcionar seus investimentos ao exterior, algo falso segundo os dados da instituição. Entre 2003 e 2018, apenas 1,3% dos desembolsos destinados para obras de infraestrutura foi direcionado para exportação, enquanto que 36% esteve voltado para obras em território brasileiro.
Já sobre as dívidas do país vizinho com o banco, a simplificação de questões complexas levou à falsa ideia de que a inadimplência da Venezuela estaria sendo sanada com dinheiro público, proveniente de impostos pagos pelo contribuinte, e de que esse “calote” teria sido danoso aos cofres da União.
As parcelas em atraso da Venezuela e de outros países são indenizadas pelo FGE, mecanismo que atua como uma espécie de seguradora do BNDES, calculando os riscos no momento da assinatura dos contratos de financiamento. Tais riscos são expressados por valores acordados com os países importadores e devem ser pagos junto com as parcelas e as taxas de juros, os chamados prêmios.
Pontualmente, ao longo da existência do FGE, o Tesouro realizou alguns aportes ao fundo, mas, segundo Koblitz, o FGE está no verde, ou seja, apesar das indenizações que teve que realizar, ele se mantém com os montantes dos prêmios que recebeu.
“Até recentemente, o FGE recebeu muito mais em prêmio pelos seguros que ele concedeu do que ele pagou de indenizações. Esse fundo é público, é um fundo, por exemplo, do contribuinte, se você quiser chamar assim, mas hoje ele é um fundo maior do que quando o contribuinte colocou dinheiro lá dentro. Então é o seguinte, o contribuinte perdeu dinheiro? Não, não perdeu. Esse fundo está aí, está de pé, ele não quebrou, nada disso”, diz.
Edição: Thales Schmidt