Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL QUE INSTITUIU SERVIÇO PÚBLICO DENOMINADO “TÁXI LOTAÇÃO”. PROCESSO LEGISLATIVO. PROJETO DE LEI APRESENTADO PELA CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE POR VÍCIO DE INICIATIVA. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO CHEFE DO EXECUTIVO MUNICIPAL. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO E DA SEPARAÇÃO DOS PODERES.
Malgrado a Constituição do Estado de Mato Grosso não preveja, de forma expressa como fez o art. 61, § 1º, inc. II, al. “b”, da CF/88 para o Presidente da República, ser competência privativa dos prefeitos municipais as leis que disponham sobre serviços públicos do município, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de que as regras básicas do processo legislativo previsto na Constituição da República, entre as quais as que estabelecem a reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos Estados-membros. Aplicação do princípio da simetria.
“Tribunais de Justiça podem exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais utilizando como parâmetro normas da Constituição Federal, desde que se trate de normas de reprodução obrigatória pelos estados” (STF. RE 650898-RS – Repercussão Geral – , Plenário. Rel. originário Min. Marco Aurélio, Rel. para acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 01.02.2017).
A iniciativa parlamentar de lei que versa a instituição e prestação de serviço público de transporte denominado “táxi lotação” denota ingerência do Poder Legislativo no âmbito de atuação reservado ao Poder Executivo Municipal, constituindo ofensa ao princípio constitucional da reserva da administração e, por conseguinte, vulnera o princípio da separação dos poderes expressamente previsto no art. 190 da Constituição de Mato Grosso.
AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE PARA DECLARAR A LEI MUNICIPAL INCONSTITUCIONAL POR VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA.
RELATÓRIO
Des. PAULO DA CUNHA (Relator) –
Cuida-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela FETRAMAR – FEDERAÇÃO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIROS DO ESTADO DE MATO GROSSO, MATO GROSSO DO SUL E RONDÔNIA em face da Lei Municipal nº 2.758/1990 (e posteriores alterações) do Município de Cuiabá, que instituiu serviço público essencial denominado “táxi lotação”.
Eis o inteiro teor da lei impugnada:
LEI Nº 2.758 DE 10 DE JANEIRO DE 1990
AUTOR: VER. JOSÉ MAGALHÃES
PUBLICADA NO DIÁRIO OFICIAL Nº 20.350 DE 15/01/90
ALTERADA PELA LEI Nº 3.497 DE 21/09/95 PUBLICADA NA GM Nº 272 DE 26/09/95, DECLARADA INCONSTITUCIONAL PELA ADIN 54/96 E ALTERADA PELA LEI Nº 4.483 DE 23/12/03 PUBLICADA NA GM Nº 665 DE 29/12/03 ALTERADA PELA LEI Nº 5.055 DE 28/12/08 PUBLICADA NA GM Nº 880 DE 18/01/08
DISPÕE SOBRE A INSTITUIÇÃO DO SERVIÇO DE TAXI-LOTAÇÃO NO MUNICÍPIO DE CUIABÁ E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.
FREDERICO CARLOS SOARES CAMPOS – Prefeito Municipal de Cuiabá-MT, Faço saber que a Câmara Municipal de Cuiabá aprovou e ele sanciona a seguinte Lei:
Art. 1º Fica instituído no Município de Cuiabá o serviço de Taxi-Lotação.
- 1º O referido serviço poderá ser prestado em veículo automotor tipo Kombi 04 (quatro) portas e tipo Micro-Ônibus 01 (uma) porta, cor padrão branca.
- 1º O referido serviço será prestado por veículo tipo micro-ônibus, 01 (uma) porta, cor padrão branca. (NR) (Nova redação dada pela Lei nº 3.497 de 21 de setembro de 1995, publicada na Gazeta Municipal nº 272 de 26 de setembro de 1995)
- 1º O referido serviço será prestado por veículo micro-ônibus 02 (duas) portas, com capacidade de 32 (trinta e dois) lugares. (NR) (Nova redação dada pela Lei nº 4.483 de 23 de dezembro de 2003, publicada na Gazeta Municipal nº 665 de 29 de dezembro de 2003)
I – Deverá o veículo portar tarja de identificação nas laterais de cor vermelha, emblema de identificação da empresa prestadora do serviço, telefone e o itinerário em local de fácil visibilidade.
I –– deverá o veículo micro-ônibus portar:
- a) tarja de identificação nas laterais, frente e traseira nas cores dos símbolos do Município;
- b) dentro do espaço da tarja conforme especificações a serem adotadas em regulamento próprio; pintura com siglas, letreiros e identificação do serviço e da empresa permissionária.” (Nova redação dada pela Lei nº055 de 28/12/2007 publicada na Gazeta Municipal nº 880 de 18/01/2008).
II – Só poderão os referidos veículos transportar passageiros devidamente sentados, de acordo com as normas técnicas do fabricante.
- 2º Os pontos de partida do centro e dos bairros serão fixos, podendo no itinerário estabelecido, o motorista parar em qualquer local onde se postar o passageiro, e na sobra de vaga transportá-lo ao seu destino final.
- 3º As linhas a serem exploradas serão distribuídas conforme prévia definição da Prefeitura Municipal.
- 4º As tarifas deverão ser cobradas por sistema de zoneamento, ou seja, de acordo com o percurso feito pelo usuário.
Art. 2º A exploração do serviço de Táxi-Lotação será realizada através de termo de permissão e alvará de licença concedidos pela Prefeitura Municipal.
Art. 2º A permissão para exploração do referido serviço, formalizada através de termo de permissão e alvará de licença, concedidos pelo Município de Cuiabá, será de cinco (05) anos, podendo ser prorrogada por igual período. (NR) (Nova redação dada pela Lei nº 4.483 de 23 de dezembro de 2003, publicada na Gazeta Municipal nº 665 de 29 de dezembro de 2003)
- 1º Poderão se candidatar a permissão somente empresas legalmente constituídas com limite máximo de quinze (15) Kombis ou no máximo 10 (dez) micro-ônibus …VETADO.
- 1º Poderão se candidatar à permissão somente empresas legalmente constituídas com limites máximo de 20 (vinte) micro-ônibus. (NR) (Nova redação dada pela Lei nº 3.497 de 21 de setembro de 1995, publicada na Gazeta Municipal nº 272 de 26 de setembro de 1995)
- 2º Os candidatos poderão manifestar sua intenção de prestar o serviço em pauta após 60 (sessenta) dias a contar da publicação da presente, através de documento escrito e devidamente protocolado.
- 3º Deverão as empresas que se candidatarem dispor de sede e escritório em Cuiabá, bem como ter garagem,…VETADO… estarem quites com o tributos municipais de acordo com Certidão expedida pela Prefeitura, e apresentarem negativa de protestos da empresa.
- 4º Será concedido o prazo de 6 (seis) meses às empresas já em operação a fim de efetuarem a troca dos veículos kombi para micro-ônibus. (Acrescentado pela Lei nº 3.497 de 21 de setembro de 1995, publicada na Gazeta Municipal nº 272 de 26 de setembro de 1995)
Art. 3º Poderá o Município revogar o termo de permissão a qualquer tempo, desde que se origine após inquérito que configura a infração do permissionário às normas e regulamentos em vigor, assegurada ampla defesa à parte.
Art. 3º Somente perderá a permissão e o alvará de licença os serviços que infringirem o disposto no art. 4º da Lei nº 2758 de 10 de janeiro de 1990 comprovado através de processo administrativo em que se garanta o contraditório e ampla defesa, sob pena de nulidade. (NR) (Nova redação dada pela Lei nº 4.483 de 23 de dezembro de 2003, publicada na Gazeta Municipal nº 665 de 29 de dezembro de 2003)
Art. 4º São obrigações dos permissionários:
I – respeitar as disposições previstas em lei e regulamentos em vigor;
II – manter os veículos em boas condições de funcionamento, higiene e segurança;
III – submeter seus veículos semestralmente à vistoria da Prefeitura Municipal, independente da fiscalização por ela exercida;
IV – efetuar os seguros previstos em lei e no termo de permissão.
Art. 5º Aplicam-se no que couber, aos serviços de Taxi-Lotação todas as disposições contidas na lei nº 1.547, de 22 de junho de 1.978, desde que não contrarie as normas contidas nesta lei.
Art. 6º VETADO.
Art. 7º Somente poderão os permissionários transferir seu termo de permissão após prévia autorização da Prefeitura Municipal, obedecidos os critérios da Lei nº 1.547, de 22 de junho de 1.978.
Art. 8º Fica revogada a lei 1.749, de 30 de outubro de 1.980.
Art. 9º A regulamentação da presente lei deverá ser feita em 60 (sessenta) dias após a publicação, com participação de representante da Prefeitura Municipal, da Câmara Municipal, dos empresários e das Associações de Moradores.
Art. 10 A Frota total do serviço será de 1/3 (um terço) da frota de transporte coletivo urbano na modalidade de ônibus no município de Cuiabá, podendo ultrapassar o limite fixado desde que se observe a necessidade deste serviço através de estudos técnicos. (AC) (Acrescentado pela Lei nº 3.497 de 21 de setembro de 1995, publicada na Gazeta Municipal nº 272 de 26 de setembro de 1995). (Artigo revogado pela ADIN 54/96 que declarou inconstitucional a Lei nº 3.497/95)
Parágrafo único Os veículos do serviço táxi-lotação poderão estacionar nos pontos de ônibus, desde que observando o tempo exclusivamente necessário para embarque e desembarque de passageiros.
- 2º A participação dos táxis lotações, após as mudanças que vierem a ocorrer, no âmbito do Sistema Municipal de Transporte de passageiros ou no âmbito do Aglomerado Urbano, deverão ser regulamentadas pelo Poder Executivo. (Acrescentado pela Lei nº 4.483 de 23 de dezembro de 2003, publicada na Gazeta Municipal nº 665 de 29 de dezembro de 2003)
Art. 11 As empresas em atividade bem como as que vieram a ser constituídas poderão sofrer transformações, fusões ou incorporações, desde que respeitados os requisitos para outorga de permissão. (AC) (Acrescentado pela Lei nº 3.497 de 21 de setembro de 1995, publicada na Gazeta Municipal nº 272 de 26 de setembro de 1995). (Artigo revogado pela ADIN 54/96 que declarou inconstitucional a Lei nº 3.497/95)
Parágrafo único Havendo fusão ou incorporação de empresas que atuarem no sistema, o limite de veículos será igual número destes bens incorporado ao patrimônio da empresa fundida ou incorporada.
Art. 12 A transferência da permissão será admitida, caso a nova empresa permissionária se obrigue a cumprir todas as condições originariamente estabelecidas para a permissão; nessa transferência não haverá qualquer pagamento de taxas. (AC) (Acrescentado pela Lei nº 3.497 de 21 de setembro de 1995, publicada na Gazeta Municipal nº 272 de 26 de setembro de 1995). (Artigo revogado pela ADIN 54/96 que declarou inconstitucional a Lei nº 3.497/95)
Art. 13 A tarifa a ser cobrada dos usuários do serviço de táxi-lotação será fixada por ato do Poder Executivo Municipal, após deliberação do Conselho Municipal de Transporte, mediante a avaliação técnica realizada pela Superintendência de Transportes Urbanos. (AC) (Acrescentado pela Lei nº 3.497 de 21 de setembro de 1995, publicada na Gazeta Municipal nº 272 de 26 de setembro de 1995). (Artigo revogado pela ADIN 54/96 que declarou inconstitucional a Lei nº 3.497/95)
Parágrafo único A tarifa de que trata este artigo será a mesma cobrada dos usuários que utilizam os ônibus de transporte coletivo de passageiros.
Art. 14 As empresas permissionárias deverão substituir seus veículos tipo micro-ônibus no mês em que estes completarem 10 (dez) anos de fabricação. (AC) (Acrescentado pela Lei nº 3.497 de 21 de setembro de 1995, publicada na Gazeta Municipal nº 272 de 26 de setembro de 1995). (Artigo revogado pela ADIN 54/96 que declarou inconstitucional a Lei nº 3.497/95)
Art. 10 Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Palácio Alencastro, em Cuiabá-MT, 10 de janeiro de 1990.
FREDERICO CARLOS SOARES CAMPOS
PREFEITO MUNICIPAL DE CUIABÁ/MT
A linha argumentativa da Federação Requerente é no sentido de que a norma municipal padece de a) inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa, uma vez que o projeto de lei foi apresentado por membro do Legislativo Municipal, e não pelo Chefe do Executivo Municipal, violando o disposto no art. 10 da Constituição do Estado de Mato Grosso c/c 61, § 1º, inc. II, “b”, da Constituição Federal, além dos arts. 66, inc. II, 190, 173, §§ 1º a 3º, todos da Constituição do Estado de Mato Grosso; bem assim padece também de b) inconstitucionalidade material por violar o princípio constitucional da obrigatoriedade de licitar e o equilíbrio econômico-financeiro das concessões das linhas de transporte regular de passageiros, afrontando os arts. 129, inc. X, e 173, § 2º, também da Constituição estadual.
Requereu a concessão de medida cautelar para suspender a aplicação da lei impugnada e, ao final, a procedência da ação direta de inconstitucionalidade.
Adotado, por interpretação extensiva às ações diretas de inconstitucionalidade de competência originária dos Tribunais de Justiça dos Estados, o procedimento do art. 12 da Lei nº 9.869/99, a Câmara Municipal de Cuiabá prestou informações requerendo a improcedência da ação direta.
O Procurador-Geral do Município de Cuiabá, arrimado em precedente do STF (ADI 3.916/DF), ao invés de defender a constitucionalidade da lei impugnada, manifesta-se pela procedência da ação direta por vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que a iniciativa de projeto de lei sobre transporte público municipal é privativa do Chefe do Executivo e não do Poder Legislativo.
Em parecer, o Dr. Hélio Fredolino Faust, Procurador-Geral de Justiça em Exercício, opina pela procedência da ação direta.
É o Relatório.
VOTO
Des. PAULO DA CUNHA (Relator) –
Eminentes Colegas.
Trata-se de ação direta requerendo a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 2.758, de 10 de janeiro de 1990, e suas posteriores alterações, do Município de Cuiabá, sob o argumento de que a norma padece de inconstitucionalidade formal e material, por afronta aos arts. 10; 40, inc. I; 66, inc. II; 129, inc. X; 129; 173, §§1º a 3º e 190, todos da Constituição do Estado de Mato Grosso.
Indene às dúvidas que, por força dos arts. 18 e 30, inc. V, ambos da CF/88, é do município a competência para organizar serviços públicos de interesse local – como o é o serviço público de transporte coletivo de passageiros –. Modo igual, não há celeuma que, no âmbito dos municípios, por força do art. 61, § 1º, inc. II, al. “b”, também da Magna Carta, aplicado aqui face à simetria constitucional, a iniciativa para projeto de lei que disponha sobre serviços públicos é privativa do Chefe do Poder Executivo.
Eis o disposto na Constituição Federal de 1988:
Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
- 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
I – fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;
II – disponham sobre:
- a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
- b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
- c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade;
- c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
- d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
- e) criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública;
- e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
- f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
- 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
Malgrado a Constituição do Estado de Mato Grosso não preveja, de forma expressa como fez o art. 61, § 1º, inc. II, al. “b”, da CF/88 para o Presidente da República, ser competência privativa dos prefeitos municipais as leis que disponham sobre serviços públicos do município, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de que as regras básicas do processo legislativo previsto na Constituição da República, entre as quais as que estabelecem a reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos Estados-membros.
Neste sentido:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – INSTAURAÇÃO DE PROCESSO LEGISLATIVO – PROJETO DE LEI VETADO – VETO GOVERNAMENTAL REJEITADO – CRIAÇÃO DO CONSELHO DE TRANSPORTE DA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO – CLÁUSULA DE RESERVA – USURPAÇÃO DE INICIATIVA DO GOVERNADOR DO ESTADO – MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA E REFERENDADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A disciplina normativa pertinente ao processo de criação, estruturação e definição das atribuições dos órgãos e entidades integrantes da Administração Pública estadual traduz matéria que se insere, por efeito de sua natureza mesma, na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo local, em face de cláusula de reserva inscrita no art. 61, §1º, II, e, da Constituição da República, que consagra princípio fundamental inteiramente aplicável aos Estados-membros em tema de processo legislativo. Precedentes do STF. O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo de positivação do Direito, gerado pela usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz vício jurídico de gravidade inquestionável, cuja ocorrência reflete típica hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do ato legislativo eventualmente editado. Precedentes do STF” (STF, ADIN n. 1.391-2-SC, Rel. Min. Celso de Mello).
Oportuno recordar que, como regra, quando os Tribunais de Justiça exercem controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais deverão examinar a validade dessas leis à luz da Constituição Estadual. Todavia, por exceção, também podem exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais utilizando como parâmetro normas da Constituição Federal, desde que se trate de normas de reprodução obrigatória pelos Estados – como no caso dos autos.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema em recentíssimo precedente datado de 01.02.2017, quando do julgamento do RE 650898/RS (repercussão geral), fixando a seguinte tese:
“Tribunais de Justiça podem exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais utilizando como parâmetro normas da Constituição Federal, desde que se trate de normas de reprodução obrigatória pelos estados” (STF. RE 650898-RS – Repercussão Geral – , Plenário. Rel. originário Min. Marco Aurélio, Rel. para acórdão Min. Roberto Barroso).
A iniciativa parlamentar de lei que versa sobre serviços públicos denota ingerência do Poder Legislativo no âmbito de atuação reservada ao Poder Executivo, constituindo ofensa ao princípio constitucional da reserva da administração e, por conseguinte, vulnera também o princípio da separação dos poderes expressamente previsto no art. 190 da Constituição de Mato Grosso.
Normas municipais similares a presente já foram objeto de ações diretas perante esta egrégia Corte de Justiça, como bem pontuado pela Procuradoria-Geral de Justiça no parecer, tendo sido sempre afirmado pelo Tribunal a competência privativa do Chefe do Executivo Municipal para deflagrar o processo legislativo de lei que verse sobre serviços públicos municipais.
Neste sentido:
EMENTA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL – TRANSPORTE COLETIVO URBANO – GRATUIDADE A DETERMINADOS SEGUIMENTOS – INICIATIVA LEGISLATIVA – VÍCIO FORMAL – SANÇÃO – VÍCIO MANTIDO – DISTINÇÃO ENTRE A POPULAÇÃO – DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO – ENCARECIMENTO TARIFÁRIO – DETERIORAÇÃO DO SERVIÇO – RESSALVA – LEIS AUTORIZATIVAS – NATUREZA INCONSTITUCIONAL – EMENDA MODIFICATIVA 03/94 – GRATUIDADE A MAIORES DE 65 ANOS – BENEFÍCIO JÁ ASSEGURADO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – PARCIAL INCONSTITUCIONALIDADE – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PARCIALMENTE PROCEDENTE. O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, que resulte da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz vício jurídico de relevante gravidade, cuja ocorrência reflete a hipótese de inconstitucionalidade formal. A ulterior aquiescência do Chefe do Poder Executivo, mediante sanção do projeto de lei, ainda quando seja dele a prerrogativa usurpada, não tem o condão de sanar o vício de iniciativa. A benesse concedida a determinadas categorias da população pode vir a refletir em substancial desequilíbrio econômico-financeiro no contrato de concessão de serviço público, além de criar despesas ao Município, sem previsão orçamentária e, de outro lado, gera o encarecimento tarifário aqueles não contemplados pela gratuidade do serviço público, bem como seu sucateamento. Ainda que se trate de leis autorizativas, o vício de forma se mantém, portanto, a inconstitucionalidade, porque a autorização ao Executivo para agir em matérias de sua iniciativa privada implicam em verdadeira imposição. Se o dispositivo legal repete a norma constitucional garantidora do direito, não há eiva de invalidade jurídica.
(TJMT – TRIBUNAL PLENO – ADI 137443/2009, rel. Des. GUIOMAR TEODORO BORGES, julgamento em 24-11-2011).
EMENTA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LIMINAR – SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DA LEI MUNICIPAL Nº 1.827/2010 – TRANSPORTE PÚBLICO – INICIATIVA DO PODER EXECUTIVO – DISPOSIÇÃO E REGULAMENTAÇÃO DE “PASSE GESTANTE” – REQUISITOS PREENCHIDOS – LIMINAR CONCEDIDA. Presentes os pressupostos autorizadores, deve ser deferida a liminar que visa à suspensão da eficácia da lei, até o julgamento definitivo da ação. É relevante a arguição de inconstitucionalidade de lei municipal, promulgada pelo Poder Legislativo local, que regulamenta a concessão de transporte coletivo gratuito às gestantes e mães de recém-nascidos de baixa renda até os hospitais e postos da rede pública, por se tratar de matéria de iniciativa do Poder Executivo.
(TJMT – TRIBUNAL PLENO – ADI 70820/2010, rel. Des. RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, julgamento em 27-01-2011).
E M E N T A – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL – VÍCIO DE INICIATIVA – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS – VEÍCULOS INTERESTADUAIS E INTERMUNICIPAIS – PARADAS OBRIGATÓRIAS DE EMBARQUE E DESEMBARQUE – INICIATIVA PRIVATIVA DO PREFEITO – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA – AÇÃO PROCEDENTE. Há inconstitucionalidade formal na Lei Municipal n. 1.779/2014, de Nova Xavantina, originada de projeto da Câmara de Vereadores, por vício de iniciativa, diante da violação ao princípio da separação dos Poderes, nos termos dos artigos 61, §1º, II, “b”, da Constituição Federal, 190 da Carta Estadual, e 54, “b”, da Lei Orgânica daquele município.
(TJMT – TRIBUNAL PLENO – ADI 184494/2015, rel. Des. RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, julgamento em 23-06-2016).
Assim, no caso concreto, tendo em vista que a norma municipal impugnada teve seu processo legislativo deflagrado por iniciativa da Câmara Municipal de Cuiabá – e não do Chefe do Poder Executivo Municipal -, configurada está, flagrantemente, a inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa.
A par disso, a título de argumento de reforço, ainda que fosse superável o vício formal, a norma também padeceria de vício material, uma vez que permitiu a prestação de serviço público sem prévio processo licitatório, em patente violação ao art. 131 da CEMT e aos arts. 37 e 175 da CF/88.
Ante o exposto, encaminho o voto de procedência da ação direta para declarar a inconstitucionalidade formal da Lei nº 2.758, de 10 de janeiro de 1990 (e posteriores alterações), do Município de Cuiabá.
CLASSE: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
PROPONENTE: EXMA. SRA. PROCURADORA-GERAL DE JUSTIÇA
REQUERIDOS: CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES E MUNICÍPIO DE CRISTAL
INTERESSADA: EXMA. SRA. PROCURADORA-GERAL DO ESTADO
RELATOR: DES. FRANCISCO JOSE MOESCH
PARECER
- Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar, proposta pela EXMA. SRA. PROCURADORA-GERAL DE JUSTIÇA, objetivando a retirada, do ordenamento jurídico pátrio, dos artigos 4º, caput, § 1º, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, e § 3º, e o artigo 5º, caput e seus §§ 1º e 2º, da Lei Municipal nº 1.117, de 18 de junho de 2009, do Município de Cristal, que estabelecem normas para a exploração do serviço de táxi no município e dá outras providências, por ofensa aos artigos 8º e 163 da Constituição Estadual, em simetria com o artigo 175 da Constituição Federal.
O dispositivo legal impugnado, ao dispor sobre a concessão e a transferência da propriedade das licenças para exploração do serviço de táxi sem o prévio processo licitatório, é materialmente inconstitucional, devendo ser expurgado do ordenamento jurídico, por violar o princípio da necessidade de licitação para concessão e permissão de serviço público. (fls. 02/8).
A liminar pleiteada foi deferida, suspendendo-se a eficácia do dispositivo legal atacado (fls. 44/45-v).
Notificado, o Município de Cristal apresentou informações (fls. 58/63). Sustentou que o Município detém competência para legislar sobre a concessão de licenças para exploração de táxis, visto tratar-se de matéria de interesse local. Alegou que a Lei em comento não pretendeu violar a necessidade de processo licitatório, mas sim adequar à situação do Município, visto tratar-se de pequeno porte.
A Câmara de Vereadores não prestou informações (fl. 65), embora regularmente intimada (fl.54-v).
Citada, a Procuradora-Geral do Estado defendeu a manutenção dos dispositivos sob o entendimento de que o serviço de táxi não configura propriamente “serviço público”, mas sim serviço de interesse público ou serviço público impróprio não havendo, portanto, necessidade de procedimento licitatório para a concessão e a transferência das permissões (fls. 68/76).
É o relatório.
- O Ministério Público ratifica o pedido inicial, pelas razões já esboçadas e pelos fundamentos a seguir declinados.
Os serviços municipais podem ser executados pelo próprio Município ou cometidos a outrem, mediante a transferência da titularidade do serviço ou, apenas, de sua execução, sob a forma de concessão, permissão e autorização.
A delegação é ato essencial para a legalidade da prestação do serviço pelo particular, devendo estar submetida à regulamentação e controle público.
Na Lei Municipal n.º 1.117/2009, do Município de Cristal, a delegação para a exploração do serviço de automóveis de aluguel (táxis), deve se dar na modalidade de concessão.
Segundo Hely Lopes Meirelles[1].:
A concessão, em regra, deve ser conferida sem exclusividade, para que seja possível sempre a competição entre os interessados, favorecendo, assim, os usuários com serviços melhores e tarifas mais baratas.
[…]
Pela Constituição de 1988 cabe à entidade concedente editar a lei regulamentar de suas concessões, o que não impede sobrevenha norma federal-nacional com preceitos gerais para todas as concessão (CF, art. 22, XXVII), o que ocorreu com a Lei 8.987, de 13.2.95, que estabeleceu as normas gerais sobre o regime de concessão e permissão dos serviços públicos. Esta lei procurou sistematizar a matéria, cuidando dos vários aspectos básicos do instituto em capítulos próprios, estabelecendo as definições, conceituando o serviço adequado, explicitando os direitos e obrigações dos usuários, fixando as regras da política tarifária, da licitação e do contrato,
[…]
Os Estados e Municípios, contudo, devem aprovar suas próprias leis sobre concessões e permissões para atender ao disposto no art. 175 da CF, respeitando os preceitos que constituem normas gerais, contidos na Lei 8.987/95.
A Constituição de 1988, ao regular a concessão para a prestação de serviço público ou de utilidade pública, exigiu a realização de processo licitatório[2], in verbis:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II – os direitos dos usuários;
III – política tarifária;
IV – a obrigação de manter serviço adequado.(grifo acrescido)
A Constituição Estadual, no caput do artigo 163, repete a mesma exigência:
Art. 163 – Incumbe ao Estado a prestação de serviços públicos, diretamente ou, através de licitação, sob regime de concessão ou permissão, devendo garantir-lhes a qualidade.
[grifo acrescido]
A exigência de prévio procedimento licitatório se aplica tanto para os casos de deferimento de novas concessões, como também, para as hipóteses de transferência de concessões já concedidas, pois, caso contrário, estar-se-ia burlando os preceitos constitucionais referidos.
Nestas condições, clara a inconstitucionalidade material do artigo 4º, caput, § 1º, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, e § 3º, os quais estabelecem a concessão de novos licenciamentos de táxis, e do artigo 5º, caput e seus §§ 1º e 2º, da Lei Municipal nº 1.117, de 18 de junho de 2009, do Município de Cristal, os quais autorizam a transferência das licenças de exploração do serviço de automóveis de aluguel (táxis), no Município, sem que, em ambas as situações, seja necessária a realização de prévia licitação, visto que viola as normas constitucionais insculpidas no artigo 163, caput, da Constituição Estadual e no artigo 175, caput, da Constituição Federal.
A necessidade de licitação para a delegação de serviço público, na modalidade de permissão, ou a transferência da permissão já concedida, de outra parte, foi objeto de apreciação da Corte de Justiça gaúcha em diversas ocasiões, sempre se concluindo por sua indispensabilidade, consoante se depreende das seguintes ementas:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRORROGAÇÃO DE PRAZO DE PERMISSÃO DE EXPLORAÇÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. AUSÊNCIA DE PRÉVIA REALIZAÇÃO DE LICITAÇÃO. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 163 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME[3].
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL QUE INSTITUI O SERVIÇO DE TÁXI-LOTAÇÃO ATRAVÉS DE PERMISSÃO, IGNORANDO O PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DA LICITAÇÃO – LEI N. 1325/93, DO MUNICÍPIO DE CACHOEIRINHA. A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE COLETIVO, SOB O REGIME DA CONCESSÃO OU PERMISSÃO, NÃO SE ENQUADRA EM NENHUMA DAS HIPÓTESES DE DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO, PREVISTAS NOS ARTIGOS 24 E 25, RESPECTIVAMENTE, DA LEI N. 8666/93. A PURA E SIMPLES PERMISSÃO DADA PELA LEI IMPUGNADA AOS JÁ PERMISSIONÁRIOS AUTÔNOMOS DO SERVIÇO DE TRANSPORTE PARA A EXPLORAÇÃO DO SERVIÇO DE TÁXI-LOTAÇÃO, NÃO RESPEITA O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL E A FINALIDADE DA LICITAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DECLARADA, POR AFRONTA AOS ARTIGOS 163 E 8 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. UNÂNIME[4].
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. TRANSFERÊNCIA DE LICENÇA DE EXPLORAÇÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS EM CARROS DE ALUGUEL – TÁXIS. AUSÊNCIA DE PRÉVIA REALIZAÇÃO DE LICITAÇÃO. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 163, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME[5].
[grifo acrescido]
Nas razões de decidir deste último julgado, o Desembargador Relator examina a questão:
A lei, ora questionada, admite a transferência de tais licenças por quem já as adquiriu sem o prévio processo licitatório. De se ressaltar, aqui, que o fato de as permissões serem concedidas por prazo indeterminado e, por isso, estendidas no tempo, não autoriza o descumprimento da Constituição quanto ao seu comando cogente pela realização de licitação para a prestação de serviço público, no caso, o transporte de passageiros em carros de aluguel (táxis), ainda que haja situações anteriores à promulgação da Carta de 1988, as quais, em que pese consolidadas, não se prestam à proteção de interesses particulares dos pemissionários. E, mesmo na hipótese de as permissões haverem sido concedidas mediante licitação, para a transferência da licença, vale o mesmo raciocínio, ou seja, não se pode deixar de observar a previsão constitucional pela realização de novo certame.
Nesta linha de pensamento, o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 42 E 43 DA LEI COMPLEMENTAR N. 94/02, DO ESTADO DO PARANÁ. DELEGAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS. CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. REGULAÇÃO E FISCALIZAÇÃO POR AGÊNCIA DE “SERVIÇOS PÚBLICOS DELEGADOS DE INFRA-ESTRUTURA”. MANUTENÇÃO DE “OUTORGAS VENCIDAS E/OU COM CARÁTER PRECÁRIO” OU QUE ESTIVEREM EM VIGOR POR PRAZO INDETERMINADO. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 37, INCISO XXI; E 175, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, INCISOS I E IV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O artigo 42 da lei complementar estadual afirma a continuidade das delegações de prestação de serviços públicos praticadas ao tempo da instituição da agência, bem assim sua competência para regulá-las e fiscalizá-las. Preservação da continuidade da prestação dos serviços públicos. Hipótese de não violação de preceitos constitucionais. 2. O artigo 43, acrescentado à LC 94 pela LC 95, autoriza a manutenção, até 2.008, de “outorgas vencidas, com caráter precário” ou que estiverem em vigor com prazo indeterminado. Permite, ainda que essa prestação se dê em condições irregulares, a manutenção do vínculo estabelecido entre as empresas que atualmente a ela prestam serviços públicos e a Administração estadual. Aponta como fundamento das prorrogações o § 2º do artigo 42 da Lei federal n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1.995. Sucede que a reprodução do texto da lei federal, mesmo que fiel, não afasta a afronta à Constituição do Brasil. 3. O texto do artigo 43 da LC 94 colide com o preceito veiculado pelo artigo 175, caput, da CB/88 – “[…] incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. 4. Não há respaldo constitucional que justifique a prorrogação desses atos administrativos além do prazo razoável para a realização dos devidos procedimentos licitatórios. Segurança jurídica não pode ser confundida com conservação do ilícito. 5. Ação direta julgada parcialmente procedente para declarar inconstitucional o artigo 43 da LC 94/02 do Estado do Paraná (STF, ADI 3521 – PR. Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 28.09.2006).(grifamos)
E, por derradeiro, porque a própria natureza do serviço delegado não autoriza a transferência de permissões irregulares, que se perpetuariam no tempo sem que o Poder Público pudesse exercer controle sobre a quem seria cometida a execução do serviço, em especial sobre sua capacidade de bem exercê-lo, o que, por certo, além de afrontar à exigência de licitação, poderia acarretar graves riscos à qualidade do serviço prestado.
Por tudo isto, impõe-se a procedência do pedido.
- Isso Posto, o Ministério Público reitera o pedido de fls. 8/9, pugnando pela procedência integral do pleito, para o fim de declarar a inconstitucionalidade dos artigos 4º, caput, § 1º, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, e § 3º, e o artigo 5º, caput e seus §§ 1º e 2º, da Lei Municipal nº 1.117, de 18 de junho de 2009, do Município de Cristal, , por ofensa aos artigos 8º e 163 da Constituição Estadual, em simetria com o artigo 175 da Constituição Federal.
Porto Alegre, 12 de abril de 2010.
AFONSO ARMANDO KONZEN,
Procurador-Geral de Justiça, em exercício.
MLAS/SBB
[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 389/90.
[2] Neste sentido, também, a legislação infraconstitucional: artigo 2º da Lei nº 8.666/1993 e artigos 2º, inciso IV, e 40 da Lei nº 8.987/1995.
[3] Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70024201055, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Maria Nedel Scalzilli, Julgado em 29/09/2008.
[4] Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 597220425, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eliseu Gomes Torres, Julgado em 30/11/1998.
[5] Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70029938172, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arno Werlang, Julgado em 28/09/2009.