BALANÇO –
Cem dias depois de assumir o leme do barco Brasil, Lula ainda têm muitas milhas pela frente até encontrar seu porto seguro.
O trecho do livro Cem dias entre céu e mar pode bem servir de metáfora para a primeira centena de dias — a se completar amanhã — do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
O solitário navegante e o presidente partiram para suas respectivas jornadas em festa. O primeiro, no porto africano, cercado por amigos e sob uma chuva de flores, em junho de 1984. O outro, na rampa do Palácio do Planalto, com uma multidão a aplaudi-lo. Além da duração, ambas as travessias foram marcadas por percalços, ameaças, conquistas e alegrias.
Forte oposição no Congresso
No caso do presidente eleito para comandar o país pela terceira vez, a primeira tormenta veio logo no oitavo dia de governo, com a tentativa destrambelhada de golpe de Estado perpetrada por um bando de opositores abrigados no acampamento do QG do Exército, sob o olhar complacente de generais e oficiais de alta patente e, também, de quem comandava as forças de segurança da capital do país.
O governo que começou em clima de confraternização voltava a enfrentar um adversário que fora cevado com generosidade nos quatro anos anteriores: a extrema-direita. Os atos de 8 de janeiro provocaram uma inédita união de forças entre os Três Poderes da República. Mais do que nunca, o presidente Lula percebeu que teria contra si uma oposição raivosa e barulhenta.
Eleito por uma ampla composição de forças que uniu políticos da esquerda à centro direita, Lula dedicou boa parte desses primeiros cem dias à formação de uma base partidária e congressual que lhe permitisse aprovar as ideias que defendera na campanha de 2022.
Desafios do Governo Lula
Em termos políticos, os desafios não são poucos. O diagnóstico mais severo partiu do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), de que o governo não tem votos sequer para aprovar projetos que exigem maioria simples, quanto mais emendas à Constituição, que exigem quórum qualificado.
“Teremos um tempo pra que o governo se estabilize internamente porque, hoje, o governo ainda não tem uma base consistente nem na Câmara nem no Senado para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais de quórum constitucional”, disse Lira, no início do mês.
Em conversa com jornalistas, na quinta-feira passada, Lula minimizou os problemas em relação à articulação no Congresso e até brincou com as dificuldades que vêm enfrentando. “Se você faz política sem dificuldade, a política não tem prazer, não tem sentido. Um pouco de confusão ajuda a gente a gostar da política”, disse ele. Depois, tentou se corrigir: “Quando a gente está num cargo como esse, tem que ter muito equilíbrio. Até hoje, não senti nenhuma dificuldade com o Congresso Nacional”.
Depois de avaliar que “é muito difícil pensar num sistema de coalizão política” com “os partidos que nós temos”, ele considerou a reforma tributária como o verdadeiro “teste para o Brasil e para o governo”.
Sem carta branca
Três meses e nove dias depois da posse de Lula, a base governista ainda não garante tranquilidade para aprovação das propostas mais complexas do governo, como o novo marco fiscal construído pela equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a reforma tributária, cujas linhas gerais sequer foram anunciadas pelo governo.
Essa é, por sinal, uma crítica frequente da oposição a Lula no Legislativo: apesar dos debates, as propostas sobre reforma tributária são matérias que já tramitam nas duas Casas do Parlamento.
“Não houve nenhum projeto relevante para o país. Além disso, há falas desastrosas (do presidente), criando um grande tensionamento político e econômico para o país. É intenção de provocar revanchismo”, critica o líder da oposição na Câmara dos Deputados, Carlos Jordy (PL-RJ).
Segundo ele, declarações de Lula relacionadas à economia geram “grande tensionamento político”. “Há revolta no Congresso. Todos estão indignados com esse comportamento. É um chefe do Executivo que só abre a boca para atacar”, dispara o líder da oposição. Ele avalia que muitas medidas tomadas por Lula ignoram o que considera “avanços” do governo anterior.
“Lula editou um decreto para inviabilizar o Marco Legal do Saneamento, que foi um grande avanço do governo Bolsonaro. Nós já estamos tomando medidas para a gente mitigar a ação destrutiva desse governo”, disse ao Correio.
Contra o tempo
A falta de articulação política come rapidamente o tempo de quatro meses para aprovação das medidas provisórias que inauguraram o novo mandato presidencial. Entre elas, as que expandiram a Esplanada dos Ministérios — de 23 pastas deixadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para 37 — e redefiniram programas como o Bolsa Família (com o adicional de R$ 600), Minha casa, minha vida, e Mais médicos.
A base do governo reconhece que a votação das medidas provisórias será o primeiro teste da governabilidade, especialmente na Câmara. “Assim que nós votarmos as MPs na Comissão Mista e encaminhar para a Câmara, será uma prova de fogo. Mas estou confiante de que iremos superar”, declarou o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Ele avalia que os impasses estão sendo superado. “A agenda já está avançando. É o governo que tem patrocinado que essas MPs, mesmo do governo anterior, sejam votadas. E os programas sociais estão voltando”, argumenta.
Depois de 100 dias de navegação, Amyr Klink desembarcou em Salvador. Nos anos seguintes, deu duas voltas ao mundo no timão de veleiros bem maiores que seu barco a remo. Cem dias depois de assumir o leme do barco Brasil, Lula ainda têm muitas milhas pela frente até encontrar seu porto seguro.
* Matéria de Vinicius Doria e Taísa Medeiros ao CB